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Meus olhos - Guilherme Silveira

Atualizado: 6 de jun. de 2022


São como arpões que se lançam para as fisionomias pálidas que lhes encaram, meus olhos. E se lançam não por que querem, mas por desejarem que os desejem os outros olhos famintos; são carentes, meus olhos. Encontram borrões, confusas expressões de gente desalinhada com o que sou e o que não sou; não se alinham nem ao que eu esperaria ser algum dia; não sei, talvez um ser ideal. Pode ser isso. Meus olhos buscam na realidade algo ilusório, criado pelo meu cérebro ligeiramente introspectivo, que representa nada mais nada menos do que o que eu gostaria de ser; e ao verem tantos borrões e caras manchadas, não para as próprias caras, mas para mim, se frustram, e carregam diariamente o peso do fracasso da busca incessante.

Esses fantasmas me assombram e por mais que eu tente, me desvirando em dois e fazendo chover a chuva de canivetes jamais vista na face da terra, não adianta! Um “oi” e eu passo a não entender coisa alguma do que sai de uma boca qualquer. Eu acho que, talvez, seja muito excêntrico (sim, meu pai disse isso um dia desses), e precise achar que todos me olham da mesma maneira que eu: incompreendido. Não sei, mas pode ser que meu olhar atento a cada movimento, fala ou expressão, buscando procurar algum elo de razão que ligue um ponto a qualquer outro, seja percebido como intrusão. Sou um intruso de fisionomias, verbos, e até mesmo de gestos tão singulares como um aperto de mãos. Não sei, pode ser que só vejo borrões e eles também, e todos seguem a vida porque não se importam com o borrão que os acompanham todos os dias. Eu preciso me preocupar com eles, pois, se não, o que me restaria? Os arpões teriam de se voltar pra dentro e, como toda vez que o fazem, dilacerariam a carne fétida.

Portanto, me calo, que é pra evitar que a boca cometa o mesmo erro que os olhos e todo o convívio social vá por água abaixo. Nessas horas, me vejo como um grande político. A coisa é bastante simples: eu os invado com os olhos, mas não tem como me julgarem, porque nada digo! Seria diferente de olhar e dizer “parece-me que está incomodado”; aí seria o fim, retiro-me, digo adeus e vou à casa; nada mais a se fazer; arruinado. Para evitar a confusão, não digo nada mesmo quando me encontro com uma face gigante a me encarar. E elas são gigantes. E assim vai, em pensamento sobre todos que não mantém os pensamentos suficientemente conectados com os meus. Não se trata de concordância! Trata-se de algo mais, algo que se conquista com o tempo, mas que de repente não aconteça com todos que eu conheça; não sei o nome, mas é como olhar uma rosa florescendo e saber o que a trouxe, e ela também saber o que o trouxe até o ponto de encontro; mas não é como olhar a rosa como rosa e ela te olhar como você, mesmo que concordem com os termos de personalidade.

 Nada falei, e assim seguimos o caminho como duas margaridas murchas ressentidas, de pétalas caindo. Por dentro, o terror do pensar no que dizer, sem magoá-la; mas o magoado tem dessas coisas de se sentir melhor quando aquilo que lhe magoa também partilha da mesma emoção, como que uma erva daninha que se alimenta da infelicidade alheia apenas por ser toda infeliz. E ela, não sei, parecia-me solidária com o silêncio e, em termos de concordância de personalidade, eu não entendia o que isso queria dizer. O dizer “tchau” caminha para mim dissolvido entre as partículas de ar, e eu não consigo captar todas suas nuances. Eu calo. Ela sai. A viagem segue. E tudo que eu queria era poder dizer “eu não quero você longe, meu bem”. Talvez meus olhos sejam murchos não por procurarem algo que não se pode encontrar na vida prática, mas por ressentirem, toda vez que vejo ela sorrindo, que poderia ter sido mais com ela, que poderia ter uma luz que ofuscasse todos os borrões, e simplesmente viveria em paz, não completamente feliz, mas em paz…

A vida anda turbulenta como um mar agitado após a tempestade. E eu, olhando-a do lado de fora da janela, imagino: “será que ela está pensando em mim?”

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